Hoje, acordei pensando que pouco a pouco, como já fiz em postagens anteriores, preciso
construir uma ponte com o meu passado, e para dar ênfase às minhas recordações, é meu desejo contar uma história verídica de pescaria, a que mais me marcou, e ainda está viva na minha memória dados os fatos desastrosos ocorridos, e que ouvi minha avó Maria contar com minúcias!
Naquela época, lá pelos idos de 1945, final da 2ª grande guerra, eu que havia nascido em 1939
adorava tudo o que meu avô , meu pai e tios faziam, procurava saber de todas as suas aventuras e desventuras, e ficava triste quando não conseguia saber desses fatos pois tinha certeza que muito perderia ao não participar, como ouvinte das diversões que a vida nos oferecia naquela oportunidade, mesmo porque ainda não conheciamos o atrativo da televisão no Brasil. Assim, todas as aventuras dos adultos muito significavam, pois todos eles eram para mim verdadeiros herois, e posso assegurar que as aventuras que eles se metiam eram sempre inocentes e nunca chegaram a me influenciar negativamente.
Frequentemente, meu avô programava uma BELA PESCARIA, como ele mesmo falava. Os apetrechos, quase todos elaborados minuciosamente por ele mesmo, com exceção dos anzois e da linhada, eram separados e guardados para o grande dia. A isca ele preparava revolvendo a terra no quintal, e pegando as minhocas. Depois, colocava-as em saquinhos de
plástico, um para cada componente do grupo que participaria do evento. As varas, de todos os tamanhos eram feitas de bambú ainda um pouco verdes, que no entender do meu avô apresentavam maior durabilidade, e eram antes testadas para verificar o gráu de envergadura. No cabo da vara, meu avô colocava um metal onde passava a linhada. Depois, mãos ao obra, todos os participantes, num final de semana anterior à pescaria, preparavam tudo para que o evento fosse bem sucedido!
Minha avó Maria, apesar de não participar fisicamente da jornada, iniciava os preparativos do farnel com antecedência , e ajudava também a separar as barracas que seriam erguidas no local escolhido para a pesca.
A localidade escolhida pelo meu avô, era a já famosa Represa Billings, que fazia limite ao sul com a Serra do Mar e ao oeste com a também famosa Represa de Guarapiranga. Os rios que cortavam aquela região, dos maiores eram o Rio Grande, Ribeirão Pires, Rio Pequeno. Nessa época, a água da represa era limpa sem poluição e piscosa, isto é havia um grande quantidade de peixes que se multiplicavam nesse local, e a pesca era permitida com algumas exceções na região do Riacho Grande, que meu avô procurava respeitar.
Na madrugada de um sábado em pleno verão, todos eles em uma caravana, se reuniram e partiram para mais uma aventura à beira da represa.
Um cunhado da minha avó, o tio Guido, um homem humilde bastante castigado pela vida, um verdadeiro carcamano(apelido dado na época aos imigrantes italianos), era sempre convidado para essas aventuras, apesar da idade, pela sua alegria de viver, suas piadas de última hora e seu bom humor e disposição. Mas era também como todo bom italiano, um tanto genioso não gostava quando as pessoas não faziam as suas vontades, as vezes um tanto radicais. Assim, lá foram eles para mais uma aventura, com certeza inolvidável.
Na época, as facilidades de locomoção para qualquer parte da cidade de S.Paulo eram bastante precárias. Poucas ruas eram asfaltadas, algumas tinham paralelepipedos, retângulos de pedra que constituiam o que chamavamos de calçamento na via transitável, e outras eram de terra batida com enormes buracos. A condução para a represa era o ônibus. Dessa forma o grupo de pescadores viajava de ônibus mesmo enfrentando os sacolejos das ruas esburacadas.
Lá chegando, os nossos pescadores já um tanto cansados e suados da viagem de ônibus, começaram a procurar o melhor local para a pescaria, na região do Riacho Grande, e notaram que haviam diversos pescadores distribuídos na margem do rio já se abarrotando dos preciosos peixes como tilápias, lambaris, carpas, traíras e outros. Realmente, segundo o meu avô contava, o rio proporcionava uma grande diversão e alegria, pois haviam pescadores que levavam para casa centenas de peixes de todos os tipos e tamanhos.
Nesse dia, como nossos pescadores não haviam chegado muito cedo tiveram que se satisfazer com um local elevado próximo de um morro, com muita vegetação em volta e pouca sombra, o que
obrigava-os a sofrer um calor infernal pois o dia era de sol pleno.
Mas, sem alternativas o jeito era acampar assim mesmo, antes que outros pescadores chegassem e ocupassem a vaga.
Como citei acima, o local era meio pirambeira, encosta de um morro e no alto uma vegetação fechada . Meus tios começaram a falar que seria necessário acampar ali mesmo e rápido, pois
muita gente acabara de chegar. Daí, começaram a cavar para prender as estacas no solo e erguer as barracas. Quando as estacas foram finalmente presas ao solo, as barracas foram
armadas...............na encosta do morro! Daí, você pode imaginar como ficou a obra.. final!!
Barracas armadas numa elevação, proximo ao sopé do morro. Uma obra de engenharia um tanto perigosa, e que vislumbrava problemas a qualquer momento.
Em seguida, sem perda de tempo, meu avô distribuiu as varas com caniços, as iscas que eram compostas das minhocas vivas, e, sabuco de milho cozido e cortado em pequenos pedaços.
Os componentes do grupo, meus tios, meu pai e meu avô, colocaram-se à margem do rio, cada um com seus apetrechos. Todos de chapéu ou boné pois o calor continuava infernal.
Meu tio Guido, resolveu escalar o morro até um determinado ponto onde a linhada alcançasse a água do rio, e achando a idéia genial, sentou-se , lançou a linhada e ficou na expectativa de que os
peixes mordessem a sua isca. Meu avô orientava a todos sobre o silêncio que todos deveriam fazer para não afugentar os peixes.
Até ai, ninguém havia se alimentado, muito embora minha avó Maria bastante precavida, na véspera, havia preparado um bom farnel caso a pesca não tivesse resultados positivos. Mas.........., o objetivo dos nossos pescadores era fazer um belo churrasco com os peixes
fisgados e comê-los com pão italiano e uma cervejinha que estava gelando numa geladeira de isopor. No entanto, nada até agora! Nenhum peixe havia se aventurado às iscas dos nossos herois.
Meu tio Guido, do alto do morro começou a se irritar, e chamava meu avô, dizendo que estava faminto e com muito calor. Mas, em vão! Nenhum peixe, calor excessivo, fadiga, sono e fome.
Nesse momento, o sol já estava se pondo, e a noite chegou de forma implacável.
Afinal, anoiteceu. Meu avô sempre previdente, colocou em cada barraca , que abrigava 3 pessoas
um lampião de querozene e uma caixa de fósforos FIAT-LUX. Distribuídos os lampiões, e como
nada haviam pescado até aquele derradeiro momento, nossos herois se fartaram do farnel que minha
avó Maria havia preparado, e tomaram também as garrafas de cerveja que eram poucas. Agora, chegada a hora de dormir, primeiro meu avô distribuiu os cobertores para cada um, além dos colchonetes. No caso específico do meu tio Guido, ele foi convidado a ficar sozinho numa barraca, uma vez que roncava muito e as vezes falava dormindo.
Mas, o pior de tudo estava por acontecer!!!
Como mencionei acima, as barracas, por falta de espaço físico, foram assentadas na encosta do morro. Assim, vocês podem imaginar que os pescadores ao dormir não ficariam acomodados num plano horizontal dentro das barracas mas, na diagonal se é que vocês me entendem!
Naquela época, tudo era muito precário, e a proteção do piso das barracas deixava a desejar no tocante a insetos rasteiros ou mesmo a umidade do solo. Assim, lá pelas tantas da madrugada, meu tio Guido começou a berrar, dizendo que tinha uma cobra na sua barraca, que era a primeira de cima
para baixo do morro. As pessoas ficaram em polvorosa e correram para tentar socorrê-lo. Mas na realidade nada havia na barraca, provavelmente ele teria sonhado ou tido algum pesadelo.
Como pudemos constatar, todos foram acordados com esse sobressalto, e, por respeito não ofenderam o tio Guido, mas voltaram para suas barracas resmungando um tanto irritados com o ocorrido.
Para completar a sinistra madrugada, e como acontecia quase sempre nas localidades próximas à
Serra do Mar, o sereno vinha acompanhado de uma garoa fina e neblina. Mas, a garoa acabou por tornar-se uma chuva leve, e face ao declive, a àgua começou a descer encosta abaixo, molhando
todo o terreno, ......................e o piso das barracas umideceu.
Os nossos herois face a esses probleminhas acabaram por passar a maior parte da noite acordados, tentando reparar os danos que a chuva havia provocado. Além disso, a temperatura tornou-se um
tanto fria e úmida.
Enfim, amanheceu na Serra, uma manhã um pouco nublada e os nossos pescadores esgotados pela
noite mal dormida, combinaram de terminar a pescaria por volta das 11 horas, e voltar para casa.
Dessa maneira tudo combinado, começaram a se preparar para voltar arrumando todos os pertences
e desarmando as barracas. Meu tio Guido, quando notou o fracasso total da pescaria, e, um tanto irritado pelas pilhérias que ouvira quando acordou em sobressaltos, resolveu aprontar!
Quando tudo estava pronto para partir, as sacolas já arrumadas, ele subiu ao topo do morro munido de uma pedra bastante grande e de lá gritou para todos os pescadores ouvirem: -PESSOAL,........... .....ACABOU A PESCARIA, HOJE NINGUÉM MAIS PESCA, e em seguida lançou a pedra no rio, o que provocou um grande barulho, e afugentou os peixes.
Em consequência, os pescadores que se encontravam à margem do rio, ficaram completamente loucos com a atitude do tio Guido, e de imediato se reuniram e vieram tirar satisfações, pois o objetivo era dar uma bela surra nele, o que felizmente foi impedido pelos nossos herois, que
tiveram de se humilhar, e com muita conversa e pedidos de desculpa contornaram essa terrível situação.
Acabrunhados, retornaram para casa, suados e cansados. Pegaram o ônibus que os traria de volta,
e como não havia lugar para sentar , segurando todos aqueles apetrechos, valises, sacolas, e, cada um segurando sua vara com caniço, eles se dirigiram para o fundo do ônibus com a intenção de se encostarem em algum lugar que desse para cochilar. Após algum tempo que o ônibus havia partido, num cruzamento de uma avenida, o ônibus foi obrigado a dar uma brecada, e ai, todos foram arremessados pr’a frente pela Lei da Inércia. Nesse momento, meu pai que conseguira cochilar, quando foi arremessado, acabou por enfiar o metal que o vovô colocava na ponta das varas, no seu próprio queixo, e esse ferimento que chegou a arrancar até um dente com raiz e tudo, provocou uma grande hemorragia, e assim, o ônibus a pedido dos passageiros, foi obrigado a parar num pronto socorro para que meu pai pudesse ser atendido. Tudo resolvido num pronto socorro do Parque Dom Pedro II, os nossos herois chegaram em casa em frangalhos, suados, cansados e famintos, e dando graças a Deus por estar novamente no aconchego do lar, muito embora não tivessem pescado um único peixinho para justificar todas as peripécias em que se envolveram.
E para completar o dia, tiveram que ouvir calados as críticas das mulheres que os aguardavam,preocupadas!
Como vocês viram, tentei com esta história, retratar mais um episódio da minha infância querida
que os anos não trazem mais, e deixar a mensagem de que : UM DIA, NÃO SEI AINDA QUANDO, TENHO VONTADE DE IR PESCAR NA SERRA DO MAR, SOMENTE PARA
SENTIR O IMPACTO DO QUE MEU AVÔ , MEU PAI E MEUS TIOS SENTIRAM ANOS
ATRÁS. ESTA SERÁ UMA MANEIRA CARINHOSA DE ME SENTIR JUNTO DELES!
HAMILCAR MARQUES - 21/05/2011.